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Vinhos tropicais: um desafio à tradição


O sol é escaldante o ano inteiro. Clima seco, altas temperaturas e pouca chuva. Um cenário improvável para a produção de vinhos, tradicionalmente oriundos de regiões mais frias. A tarefa, se não impossível, é, no mínimo, desafiante. E como tal é cumprida no Vale do Submédio São Francisco, na região semiárida do Nordeste brasileiro, onde as características naturais são aliadas a tecnologias, incluída a irrigação. Dessa forma, é possível colher uvas e elaborar vinhos tranquilos (sem borbulhas) e espumantes (com borbulhas), brancos, tintos e rosés, nos 365 dias do ano.


Isso porque, no Vale, o momento da colheita é definido pelo produtor, que consegue escalonar a produção de uvas de forma ininterrupta. Diferentemente das demais regiões vitivinícolas, em que os estágios das plantas são determinados pelo clima característico de cada época do ano, no Semiárido, onde não há grande variação climática de janeiro a dezembro, os ciclos vegetativos são induzidos pelo estresse ou oferta de água e pelas podas nos períodos desejados.


A possibilidade de uma videira chegar a produzir até cinco safras de uvas a cada dois anos também diferencia a região. É um paradoxo para a tradicional e já consagrada vitivinicultura do “Velho e do Novo Mundo”, centrada em regiões de clima temperado, em que a videira produz apenas uma safra por ano e sempre na mesma época.


Nova geografia do vinho


O “Velho Mundo”, identificado com o continente europeu, é consagrado historicamente na produção de vinhos. Entre os mais tradicionais produtores estão países como França, Portugal, Espanha e Itália. Já os países do “Novo Mundo” tiveram seus vinhos reconhecidos, sobretudo, a partir da segunda metade do século XX. Aí se incluem os Estados Unidos, Chile, Argentina, África do Sul, Austrália, Nova Zelândia e também o Brasil, onde a produção foi concentrada inicialmente nas regiões de clima subtropical, nos estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Em comum entre os dois “mundos” está a característica de apenas um ciclo da videira e uma colheita de uvas por ano.


Mais recentemente, o mapa da vitivinicultura mudou novamente, passando a contemplar outras regiões do globo, com os chamados “vinhos tropicais”. Produzidos nas latitudes mais baixas, entre os trópicos de Câncer e Capricórnio, são definidos como os vinhos obtidos de uvas produzidas em regiões nas quais é possível, em condições naturais, mais de um ciclo anual da videira, com uma ou mais colheitas por ano. As variantes de clima exploram localidades com períodos menos úmidos até climas áridos.


Essa nova geografia do vinho está estabelecida em mais de uma dezena de países, de diferentes continentes. Na América do Sul, destacam-se o Brasil e a Venezuela, além do Peru e Equador. Na Ásia, os principais produtores são Myanmar (antiga Birmânia), Tailândia, Índia, Indonésia e Vietnã. A África é representada pela Etiópia, Gabão, Quênia, Namíbia e Tanzânia; e a Oceania, pela Polinésia Francesa.


“A produção de vinhos tropicais é muito particular e diversa em relação àquela praticada em regiões de clima temperado, e suas características são desafiadoras quando comparadas às da vitivinicultura tradicional”, avalia o agrônomo e pesquisador da Embrapa Uva e Vinho Giuliano Elias Pereira, que atua em Petrolina (PE), na Embrapa Semiárido. É uma atividade altamente tecnológica, pois ações de manejo, como poda, irrigação e uso de reguladores de crescimento para a quebra de dormência, são as grandes responsáveis por garantir esse novo modelo de cultivo e a produtividade desejada.


Além disso, em tempos em que as mudanças climáticas sugerem desafios às regiões produtoras tradicionais, a vitivinicultura tropical pode ser considerada como um laboratório permanente para avaliar os efeitos da produção em condições de clima mais quente. A adaptação de variedades em áreas tropicais para vinhos de qualidade poderá ser uma referência para as regiões de clima temperado se anteciparem aos potenciais impactos no futuro.


No entanto, não existe apenas uma vitivinicultura tropical, pois são diversas as variações entre as regiões. Na Índia e na Tailândia, por exemplo, o clima é Tropical de Monções, com inverno extremamente seco e verão bastante chuvoso. O norte do Peru é quente e árido, praticamente sem chuvas. Já o Semiárido brasileiro é quente, seco e com pouca precipitação. Cada um desses atributos exige um modo diferente de produção.


A enóloga Nikki Lohitnavy, proprietária da vinícola GranMonte, na Tailândia, explica que, nas condições daquele país, é possível colher uvas até duas vezes por ano para produzir vinho. No entanto, durante a estação chuvosa, seriam necessários muitos produtos químicos para o controle das doenças e a grande quantidade de água afeta a qualidade da uva e, consequentemente, também a do vinho. Assim, a opção dos vitivinicultores é realizar apenas uma colheita por ano, de forma a obter um produto de melhor qualidade.


Além do número e período de colheitas, outras características podem ser diferentes em cada localidade. O enólogo James Kalleske, da vinícola Hannen Wines, de Bali, na Indonésia, destaca que a poda da videira é feita de um modo específico na região. Toda a produção é irrigada por sulco e inundação, e são utilizadas variedades de uvas não convencionais na produção mundial de vinhos.


Vinicultura dos trópicos atrai geração jovem e multinacional


Trabalhar em um universo tão tradicional como o da produção de vinhos, mas com características tão particulares como as da vitivinicultura tropical, requer uma junção de criatividade e coragem. E muitos jovens ao redor do mundo estão mergulhando nessa atividade.Nascido em uma tradicional região produtora de vinho, o australiano James Kalleske, de 31 anos, desde cedo se interessou pela área. Aos 17 trabalhou pela primeira vez em uma vinícola, e aos 21 já era um dos principais gerentes da produção de vinho local, ainda antes de terminar a graduação.Depois decidiu ir para Bali, na Indonésia, por ser uma região mais instigadora para o cultivo de uva e produção de vinho, o que, para ele, funciona como um estímulo. Em suas diversas viagens para outras áreas tropicais, especialmente na Ásia, Kalleske tem observado que a maioria dos produtores nesses locais são jovens. “Acho que o pessoal mais novo é mais entusiasmado com essa aventura em regiões tropicais”, comenta.Foi esse entusiasmo que o australiano encontrou na amiga e também enóloga Nikki Lohitnavy, da Tailândia, que se interessou pela vitivinicultura quando o pai se aposentou e começou a produzir vinho por hobby. Ela gostava de lidar com as plantas do jardim e começou a se envolver também com as parreiras, passando a conhecer outros produtores, buscar informações e viajar pelo mundo. Até que decidiu: “Isso é o que eu realmente quero como profissão.”


Nikki foi para Austrália e se graduou em enologia. Durante o curso, toda técnica ou tecnologia que aprendia passava para o pai aplicar nos vinhedos e na produção de vinho – que então era feita por uma vinícola contratada. Quando concluiu os estudos, voltou para a Tailândia e a família construiu a própria vinícola, passando a ter mais controle sobre o processo de vitivinificação, o que aumentou a qualidade do produto.


Hoje, aos 39 anos, Nikki conta que as pessoas se surpreendem com sua trajetória: uma mulher tão nova, asiática e produzindo vinho. Para ela, o mais importante é quando experimentam o vinho e constatam que é de boa qualidade.


E como surpresas são inerentes à exploração de novos mundos, esse foi o sentimento experimentado pelo enólogo português Ricardo Henriques quando aceitou a proposta de cruzar o oceano e se instalar no Semiárido brasileiro. “Quando a gente vem de uma região que é muito tradicional, falar que você pode colher uva toda semana, ou fazer duas safras por ano, parece um absurdo.”

Essa possibilidade, ele conta, ia contra aquilo que sempre estudou. Hoje, aos 32 anos, Ricardo já se habituou às diferenças, e se sente realizado em trabalhar com aquilo que gosta. “Eu tenho a possibilidade de fazer uma coisa nova em uma região nova, e acredito que a vinícola e também a região ainda têm muito para oferecer”, avalia.

Fonte: Embrapa

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